‘Edital passa por nós’: empresários revisaram licitação em Criciúma antes de publicação

O esquema fraude e corrupção envolvendo o serviço funerário de Criciúma, no Sul de Santa Catarina, contou com a anuência da administração pública e teve participação direta de empresários, responsáveis pelas envolvidas no processo licitatório. A conclusão é do Ministério Público de Santa Catarina.

Em trocas de mensagens, interceptadas durante a investigação, ficou comprovado que os denunciados promoveram a mudança em leis municipais, alterações em documentos e, até mesmo, em valores estabelecidos para concorrência na licitação em Criciúma.

Empresário denunciado por fraude em licitação em Criciúma enviou foto de documento para comparsas

Empresário denunciado por fraude em licitação enviou foto de documento para comparsas – Foto: Reprodução/ ND

Após um ano e meio de apuração, o MPSC conseguiu denunciar 21 pessoas, entre empresários, funcionários públicos e até mesmo o prefeito de Criciúma, Clésio Salvaro (PSD).

Eles respondem por formação de organização criminosa, fraude em procedimentos licitatórios e contratações públicas, crimes contra as relações de consumo, e corrupção passiva e ativa.

Funcionário recebeu R$ 100 mil para intermediar fraude

Segundo apurado pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado), parte dos investigados integrava um grupo no WhatsApp, nomeado “Crematório Criciúma”, pelo qual articulavam as mudanças que seriam realizadas no procedimento licitatório.

Em parte da denúncia, à qual a reportagem do ND Mais teve acesso, o lobista Jefferson Damin Monteiro era apontado como responsável por articular o esquema junto a Thiago de Moraes, gerente da empresa Crematório Catarinense e Bom Jesus.

Pela quantia de R$ 100 mil, Jefferson foi contratado para intermediar as negociações das empresas funerárias com a prefeitura. Dessa posição, ele repassava os documentos a Thiago.

Conforme a denúncia, Jefferson “tinha o cuidado de não remetê-los em meios digitais e telemáticos”, atitude que Thiago não repetia. Em, pelo menos, cinco momentos, Thiago saiu de reuniões com Jefferson e encaminhou fotos de documentos sigilosos da prefeitura no grupo que tinha com os demais envolvidos no esquema.

Conversa entre Jeferson Monteiro (e) e Thiago de Moraes (d), interceptada pelo MPSC, sobre a contratação de serviços funerários mediante licitação em Criciúma

Conversa entre Jefferson Monteiro (E) e Thiago de Moraes (D), interceptada pelo MPSC, sobre a contratação de serviços funerários mediante licitação em Criciúma – Foto: Reprodução/ ND

“Tem que tratar com muito carinho”, diz investigado sobre licitação em Criciúma

A contratação da empresa, mediante licitação em Criciúma, aconteceu no ano de 2022. Em julho daquele ano, Jefferson se reuniu com o então secretário de Assistência Social do município, Bruno Ferreira, e com o prefeito da cidade, Clésio Salvaro.

Na ocasião, Jefferson informou a Thiago que precisaria repassar uma tabela com os preços dos grupos de caixões e serviços funerários.

Após receber as mensagens de Jefferson, Thiago enviou um áudio no grupo do WhatsApp, afirmando que “o texto do edital, ele vai ser finalizado pela Juli, aquela moça lá que é do [Clésio] Salvaro” e que “antes de sair o edital, vai ter uma revisão do Monteiro. Vai ter os apontamentos, né?”. No entendimento do MPSC, “os apontamentos” seriam as sugestão dos empresários.

Segundo o Gaeco, a “Juli” é Juliane Abel Barchinski, funcionária pública que atuou na elaboração do edital como Presidente da Comissão Especial de Licitação dos Serviços Funerários e dos Serviços Cemiteriais de Criciúma.

No dia seguinte às mensagens, Jefferson informou a Thiago que “hoje temos mais documentos”. A papelada em questão era a minuta de um decreto com as tabelas de valores do pregão.

“Pelo que eu olhei ali na tabela de preço tá completa. O termo de referência ainda não foi publicado, está esperando a gente… é… Vamos dizer assim, conferir, olhar, formatar e aí publicar entenderam? Então assim, como diz o Jefferson: ‘vocês tem que tratar com muito carinho, da melhor forma possível, porque tá na mão de vocês”, disse Thiago de Moraes em áudio.

Edital de licitação foi revisado por empresários denunciados

Em outro trecho da investigação, o MPSC aponta que os empresários ligados ao grupo Crematório Catarinense e Bom Jesus fizeram diversas sugestões de alteração no edital — todas através da função exercida por Jefferson Monteiro.

Jefferson prometeu, por mensagem de áudio, que forneceria o edital completo da licitação antes da publicação para que o grupo pudesse realizar mais uma “revisão nossa”.

Em novembro de 2022, Thiago de Moraes avisou por áudio, aos membros do grupo “Crematório Criciúma“, que tinha, em mãos, o texto final do edital para nova análise. Em seguida, o denunciado encaminhou uma foto da capa do edital para os cúmplices.

Após analisar as quase 50 páginas do documento, Thiago comentou que todas as sugestões foram aceitas pela Prefeitura de Criciúma, exceto o valor da outorga. O grupo solicitou redução de R$ 500 mil para R$ 300 mil. Contudo, o valor reduzido além do esperado, fixado em R$ 100 mil.

Leonardo Leier, empresário por trás do grupo Crematório Catarinense e Bom Jesus, ao lado de Sandro Guaragni, comemorou. “Baixar de 500 para 100 não muda nada, ninguém vai oferecer menos que 800 mil”, disse.

Em mensagens, investigados por fraudar licitação em Criciúma comemoram que “tudo foi aceito” pela Prefeitura – Foto: MPSC/ Reprodução/ ND

Houve conluio entre prefeitura e empresários, diz MPSC

As mudanças para valores muito abaixo do solicitado, inicialmente, não agradaram aos empresários, que pediram uma nova alteração. Jefferson, novamente, contatou o prefeito de Criciúma para tratar do assunto. Após a reunião com Salvaro, Jefferson enviou um áudio para Thiago:

“Ele [o prefeito] colocou pra mim o seguinte: Monteiro, olha só, tu pediu pra eu fazer de 6 para 4 (empresas) e fizemos. Você tá por dentro de tudo, estou te deixando a par de tudo. Esses valores a menor não vão trazer prejuízos para NOSSOS AMIGOS, não vão prejudicar eles no processo, então eu vou manter [os valores da tabela]”, disse Jefferson.

A redução citada por Clésio Salvaro diz respeito a uma lei municipal, que diminuiu de 6 para 4, o número de funerárias que podem prestar serviços no município. Jefferson era suplente de vereador e, à época, assumiu a vaga na Câmara Municipal para poder participar da votação do projeto que viria a beneficiar os empresários.

O titular da cadeira, vereador Daniel Frederico Antunes, recebeu propina de R$ 5 mil para se licenciar. Ele também foi indiciado pelo Ministério Público de Santa Catarina.

“Quando agente é bem vindo e tem amizade pela prefeitura, o edital de Criciúma antes de ser publicado passa por nós para aprovação”, disse o empresário Leonardo Leier, em mensagem para os cúmplices.

Segundo a investigação, as modificações na licitação em Criciúma, solicitadas pelo grupo criminoso, foram “grandiosas e estratégicas o bastante, que permitiriam, posteriormente, que as empresas, já na execução do contrato, auferissem lucros ilícitos”.

O MPSC aponta que a iniciativa gerou “crimes contra a economia popular, a ordem tributária e a administração pública”. O edital para prestação dos serviços funerários, foi publicada no dia 3 de novembro de 2022.

Contrapontos

Em nota, a defesa de Jefferson Monteiro informou que “aguarda o julgamento que ocorrerá na próxima quinta-feira, no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a respeito do pedido de liberdade protocolado”.

Os representantes do secretário Bruno Ferreira afirmou que “segue buscando a revogação da prisão preventiva por entender desnecessária ao atual momento do processo”. Segundo os advogados, Ferreira “prestou depoimento junto aos Promotores de Justiça, não causou qualquer óbice à investigação, possibilitou acesso à documentos e prestou todos os esclarecimentos que foram feitos”.

A reportagem tenta contato com a representação jurídica dos demais mencionados na matéria. O espaço segue aberto para manifestação.

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